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LÚCIA ORTIZ

14/12/2005

Os senões do leilão de energia elétrica


Às vésperas de mais um leilão, é necessário denunciar que a lógica da política energética permanece invertida: primeiro se vende a energia para os próximos 15 anos, e só depois se apresenta o esperado Plano Decenal de Expansão do Setor Elétrico brasileiro.

Atropelando todos os possíveis “entraves”, o leilão de energia nova deve ocorrer nesta sexta-feira (16), no Rio de Janeiro, com o objetivo de vender contratos de fornecimento, pelos próximos 15 anos, da energia elétrica das novas usinas ainda sem concessão ou autorização e dos projetos concedidos ou autorizados até 16 de março de 2004 (leia nota). Nesta quarta-feira (14) se as regras não mudarem novamente no último minuto da partida, é o prazo final para as empresas credenciadas apresentarem as licenças ambientais prévias (LPs) e demais documentos de garantias de proposta e garantias financeiras necessárias. No total, 141 empresas foram habilitadas pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) a participar do leilão.

Para o setor elétrico, os “entraves” correspondem principalmente à dificuldade na obtenção das LPs, que, na maioria dos casos, denota a inviabilidade da obra, ou a existência de sérios conflitos socioambientais desencadeados pela mesma, e que são vistos como “barreiras a ultrapassar”. Outro entrave são as próprias leis e decretos presidenciais, os quais são facilmente atropelados por portarias do Ministério de Minas e Energia (MME). Mesmo assim, é muito provável que as metas do governo para o leilão não sejam cumpridas. E o fracasso do leilão é motivo de reflexão.

Para a sociedade, o grande entrave está na ausência de um planejamento, transparente e participativo, que deveria ter sido retomado neste governo. Sem o planejamento, inverte-se a lógica da política energética: primeiro se vende a energia para os próximos 15 anos, sob a pressão da ameaça de um novo apagão para justificar qualquer empreendimento questionável do ponto de vista ambiental e financeiro, e só depois – quando? – se apresenta o esperado Plano Decenal de Expansão do Setor Elétrico, feito a portas fechadas e a estas alturas sem qualquer efetividade para evitar os “senões” deste leilão de energia.

A carroça na frente dos bois

Depois do apagão de 2001, o governo Lula prometeu em campanha a retomada do planejamento do setor energético, cujo rumo não poderia simplesmente estar à mercê dos interesses e inconstâncias dos investidores privados. Para isto criou-se a EPE (Empresa de Pesquisa Energética), vinculada ao MME, que este ano deveria lançar um Plano Decenal de Expansão do Setor Elétrico, além de apresentar um planejamento de longo prazo do setor.

A EPE ainda é uma caixa preta para a sociedade. Está mais para balcão de negócios, de licitações de estudos e realização de leilões do que para empresa de pesquisa e planejamento. Sem um debate amplo e um planejamento consolidado, quem escolheu, então, a lista das 17 hidrelétricas para o leilão? Sabe-se apenas que o Ministério do Meio Ambiente foi consultado dentro de um processo fechado aos olhos do público. Qual a influência do planejamento na definição dos empreendimentos prioritários e da matriz energética como um todo depois que os empreendimentos listados saírem do papel, contanto com os recursos da energia vendida no leilão?

O perigo com o provável fracasso do leilão é que a fera ferida do Setor Elétrico, em vez de avaliar outras opções propostas para o futuro energético do país, contra-ataque com megaprojetos mais antigos, ousados e destrutivos, como o Complexo do rio Madeira e as usinas do rio Xingu, jogando fora qualquer possibilidade de discussão sobre o planejamento energético no país.

As mutantes regras do jogo

As mudanças nas regras do jogo do leilão já foram tantas que é difícil para os próprios empreendedores acompanharem, o que dirá para a sociedade entender o que acontece. A assim chamada “habilitação condicionada” só foi possível com a edição da Portaria 509 do MME, de 20 de outubro, que é ilegal, por alterar um decreto federal. Essa portaria possibilita que empreendimentos que ainda não tenham LP possam se habilitar para o leilão, com a condição de apresenta-la em prazos que foram sucessivamente prorrogados.

A portaria do MME nº 547, de 5 de dezembro, seguindo o mesmo propósito de facilitar a habilitação de empreendimentos de geração de energia elétrica para concorrerem no leilão de energia nova, dilatou novamente o prazo de entrega das LPs. O novo prazo previsto é de até dois dias antes da data do leilão, ou seja, dia 14 de dezembro. O prazo anterior, que também já havia sido prorrogado via Portaria 516 do MME, era de dez dias antes. As mudanças estabelecidas na Portaria nº 547 alteraram também os artigos 7º da Portaria MME nº 328, de 29 de julho de 2005, o artigo 10 da Portaria MME nº 509, de 20 de outubro de 2005, e o artigo 2º da Portaria MME nº 529, de 8 de novembro de 2005, que tratam dos leilões de energia.

Através dessas oportunas mudanças nas regras, foi permitida a habilitação para o leilão de um conjunto de treze aproveitamentos hidrelétricos e de mais quatro usinas termelétricas a carvão, dentre os quais pelo menos seis ainda hoje não dispõem de LP. Mas até sexta-feira, as coisas ainda podem mudar.... Apesar de ser uma exigência da legislação (Decreto Federal 5163/2004, art. 20, IV, “c”) e um dos pilares do anunciado Novo Modelo do Setor Elétrico, a habilitação apenas dos empreendimentos considerados ambientalmente viáveis vai sendo desrespeitada.

Empurrando hidrelétricas sem viabilidade socioambiental goela abaixo

O Setor Elétrico Brasileiro conseguiu levar ao leilão somente oito das dezessete hidrelétricas inicialmente previstas, algumas com as licenças sendo contestadas na justiça: um grande fracasso do ponto de vista do novo modelo do setor. Além de apresentar projetos sem viabilidade ambiental - com o caso da maior hidrelétrica que pretendiam oferecer, Ipueiras, no rio Tocantins, para qual o licenciamento ambiental foi negado pelo Ibama - outros projetos foram objeto de sérios conflitos ambientais, sociais, e jurídicos, mostrando a inadequação desta lógica dentro de um ausente processo de planejamento energético no país.

O Ibama desenhou uma linha na areia, declarando Ipueiras como uma obra inviável, por afetar áreas consideradas importantes para conservação do cerrado e ameaçar uma área de refúgio da vida aquática no já degrado rio Tocantins, onde já existem sete barragens em operação ou construção, e onde estão planejadas ao todo cerca de oitenta hidrelétricas. O presidente da Eletrobrás, Aloísio Vasconcelos, chegou a propor a subversão da objetividade do processo de licenciamento, dizendo que "essa usina merece uma atenção patriótica do Ibama".

Sujando a matriz energética nacional

A falta de do planejamento energético com discussão pública e a forçação de barra para a venda das hidrelétricas inviáveis foram motivos para ressuscitar velhos fantasmas: a fonte de energia do século passado, o carvão mineral.

A despeito de todos os passivos ambientais irrecuperáveis e conhecidos problemas de saúde do trabalhador no sul do Brasil causados pelo setor carbonífero, quatro “novas” usinas a carvão mineral, todas no estado do Rio Grande do Sul, pretendem garantir os recursos financeiros para suas construções a partir da venda de energia cara e poluente neste próximo leilão.

Por mais que o setor se empenhe em repetir exaustivamente as palavras “tecnologias limpas” e “responsabilidade ambiental” é difícil engolir como “energia nova” aquela proveniente de emprendimentos como Jacuí I e Candiota III. São adaptações de velhas plantas estocadas há mais de 25 anos, estas sim verdadeiros “entraves” ao desenvolvimento do país, que já na época em que foram adquiridas da França e da Inglaterra, países que estavam empreendendo um programa de abandono do carvão mineral e dos seus problemas ambientais, eram consideradas obsoletas. Os projetos mais novos, Seival e CT Sul, apresentados como tecnologia de ponta, têm como parceiros de negócio empresas e bancos da China, país que não pode dar exemplo nas questões de meio ambiente e segurança do trabalho, questões intimamente relacionadas à sua matriz energética com base no carvão mineral.

O projeto CT Sul, ainda em fase de licenciamento ambiental, foi beneficiado pelas seguidas mudanças nos prazos para habilitação no leilão. Após uma representação feita pelas organizações da sociedade civil junto ao Ministério Público, questionando a data fora do prazo legal inicialmente proposta, a audiência pública foi remarcada para esta terça-feira, 13. Depois disso, o prazo para a apresentação das LPs para a habilitação no leilão ironicamente foi mais uma vez adiado para quarta-feira, 14. A previsível liberação da LP um dia após a audiência pública não mais chocaria a sociedade que está consciente de que, em meio ao poder de pressão dos interesses econômicos, esta etapa não passa de mero formalismo.

E onde fica a propaganda internacional do Brasil como o país da energia limpa? Somente estes quatro projetos termelétricos, se concretizados, contribuirão para a emissão de mais de 9 milhões de toneladas por ano de CO2, tornando inócuos os propagandeados esforços do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia (Proinfa) em evitar as emissões de 2,5 milhões de toneladas anuais deste gás de efeito estufa a cada ano.

Energia barata só com planejamento e eficiência

Ao mesmo tempo em que não conseguem colocar a leilão uma série de empreendimentos hidrelétricos previstos, os investidores se queixam do limite posto pelo Ministério de Minas e Energia, de R$ 116, para venda da energia nova, mostrando que se as empresas precisariam colocar o seu dinheiro na mesa sem subsídios públicos, a hidroeletricidade no Brasil poderá ter o mesmo destino da cara e inviável energia nuclear - e isso, sem o pleno reconhecimento dos custos ambientais e sociais das obras. Da mesma forma, sem contabilizar externalidades ambientais óbvias da geração de energia do carvão na previsão dos custos da energia, as termelétricas contam com subsídios das contas de combustível (CCC) e de desenvolvimento energético (CDE), além dos fartos financiamentos do BNDES.

Para buscar modicidade tarifária e evitar futuros apagões, um programa de otimização do potencial elétrico instalado e a adoção de metas ousadas de eficiência energética em todos os níveis deveria ser o primeiro item do planejamento. A repotenciação das usinas hidrelétricas com mais de trinta anos e a redução das perdas atuais que ocorrem entre os sistemas de geração, transmissão e distribuição para níveis internacionalmente aceitáveis poderiam colocar á disposição – inclusive para a venda no leilão – o equivalente à energia produzida por Itaipu – 12 mil MW – com preços certamente inferiores aos previstos para a energia dos novos empreendimentos listados para este leilão.

O plano B?

É possível que o leilão fracasse dentro da ótica do setor, seja pelo preço da energia, pela inviabilidade técnica e financeira de empreendimentos, pela impossibilidade na obtenção das LPs. Teria o governo um plano B para ir além de impedir um alardeado apagão? Para, de fato, cumprir com as diretrizes do seu Novo Modelo do Setor Elétrico, de modicidade tarifária e sustentabilidade social e ambiental?

As universidades, setores empresarias e a sociedade civil organizada há tempos vem apresentando propostas para este plano. A retomada do planejamento energético deve ser transparente e contemplar os diversos setores, ampliar-se, ao invés de ficar restrita apenas aqueles mesmos setores que têm influenciado a definição do modelo energético a serviço dos seus interesses.

Nota: na primeira fase do leilão, haverá disputa das concessões para a construção e exploração de novas hidrelétricas pelo critério de menor preço. Na segunda, os vencedores terão direito a participar da comercialização dos produtos ou montantes de energia das novas usinas arrematadas na fase anterior; de novas usinas termelétricas ou pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) a ser autorizadas; e dos projetos sem contratação. Haverá então a classificação das ofertas dos vendedores e, em seguida, ocorrerá a terceira fase com lances pelo menor preço.


Lúcia Ortiz é coordenadora do Grupo de Trabalho Energia do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (FBOMS) e do Núcleo Amigos da Terra (NAT/Brasil).